31.10.06

feminino

Oito andares;
Você sabe da minha insônia em hotéis.
Eu respiro contando de um a quarenta,
mas eu não lembro se é essa a contagem – até que número vai;
mas eu respiro
o carpete,
o espirro,
a camiseta preta e esse livro em espanhol,
a calcinha preta e o telefone desligado.
Esse não esquecimento - que é muito diferente de lembrança.
Planejo depois fugir - acordar cedo pra fugir.

Você sabe das minhas long distance calls,
do meu não apreço pelas expressões em inglês,
do meu medo de não conseguir dormir.
Você sabe quase tudo, quase

sabe
que eu liguei a televisão e só sai som, o monitor vazio, preto?;
que eu gosto de andar a pé; eu vou fugir a pé.

Esta cidade é tão inespecífica.
Sabe que uma mulher sofrendo é tão inespecífica,
como ela disse na peça. Essa frase é minha também?
Como são frágeis as mulheres fortes.
Como somos todas iguais.

Vou te dizer:
Eu brilho – e ninguém vê.


26.10.06

a menina no deserto

Numa sala branca e vazia, Joana e Alice esperam, mudas. O silêncio ocupa o retângulo como ar. Uma cabeça sem pensamentos. Joana está prestes a se apaixonar. Já se apaixonou? Quem dirá? Alice está sempre pronta para morrer. Ou já terá morrido, ou morre tantas vezes quanto capítulos.
Daniel segue parado, sempre o braço apoiado no batente. Músculos. Segue parado. Se angustia em sua imobilidade, animal. Joana ainda olha, ainda sente nem sabe o quê. Sentirá pra sempre, no resto da página em branco.


20.10.06

Enguiço

Penso então que
o Rio de Janeiro ainda funciona.
Túnel Rebouças: 796 veículos enguiçados em setembro.
O barulho das sirenes, as freadas de ônibus, as buzinas;
um olho entreaberto vê: 6h15;
o outro está esmagado contra o travesseiro.

A cabeça pesa,
as costas doem.

Amor, você faz tanta falta.


15.10.06

lá fora

O barulho é muito.
A sala vazia, e o chão treme -
eu me viro pra trás achando que alguém chegou.

(Mas)
é uma solidão de tacos de madeira,
paredes muito nuas
e asas,
alçar vôo.

Subindo de elevador,
emburrada,
sou o personagem, bobo e triste,
do meu próprio poema.

São sete andares,
meio milhão de pombos,
a copa das árvores
e meu coração, verde como as folhas,
já tão cansado.

Sem alguém pra me amarrar os cadarços,
uso sapatos mais delicados.


14.10.06

você não sabe

que
eu tenho dois pneus furados
e um novo, já na roda,
que eu estou com preguiça de trocar
mas quero aprender a usar o macaco
foi no dia do cinema,
eu mandei calibrar, mas o moço não fechou direito
e eu fui esvaziando, esvaziando,
até chegar em casa.
que
meu professor de ioga se chama fernando,
com f de faca, folha, festa, fósforo,
flávia, figo, felipe, felicidade.
que
eu comprei um armário ali na rua do senado,
que ele é pequeno, não comporta um quinto
das minhas roupas,
mas é muito simpático.
que eu tenho novas gírias.
que, veja só,
já passou tanto tempo
que eu já troquei o pneu,
já sei usar o macaco.


11.10.06

refogado

o cheiro que vem da cozinha,
cebola tomate azeite alho:
é tão bom,
ainda é manhã -
você não sente fome.

o cheiro basta,

mas
as horas passam e o prazer
vira buraco no estômago:

o desejo destrói a felicidade.


os outros

Uma noite de poeira. Se acontecesse algo de fato, uma história. Mas não há fatos, então um poema. Ela tira languidamente o vestido, esperando ser vista, suas longas pernas cansadas. Firmes. Ele olha pro lado, cuidando que não a vejam, e não a vê. Já sabe o que existe, bastam os pensamentos. Depois a meia calça transparente, quase transparente, nunca fazem meias calças transparentes. Ela alisa as pernas, esperando ser vista. Ele observa, distraído, através da cortina fina. Os outros chamam, eles estão demorando demais: o motorista está impaciente. Ela enfia uma saia jeans e uma camiseta e sai. As pedras amareladas, ele pensa em antigas fotografias, elas estão úmidas do sereno. Ela pensa em como está mais magra, em como o figurino lhe caiu melhor nesta noite. Os outros a cobrem de olhares invejosos, desejantes. Mas ressoa um relâmpago, caem umas primeiras gotas, e eles a esquecem. Ela segue, seus passos, tap tap tap, nos paralelepípedos. Ele sente a presença dela como um automóvel que passa veloz a seu lado. Mudo. O ar em volta dele treme, seus pêlos se eriçam. Ele se desconcentra dela por causa do frio que sai dela. Ele sobe a escada na frente, pulando os degraus, quatro lances que ele conhece de cor. Ela tem muita preguiça, se arrasta apoiada ao corrimão, os olhos como calda de caramelo, escorrendo, escorrendo. Segue o rastro dele, pela porta aberta; agora fechada. É ela quem lidera os passos à cama. Os sapatos, pof, pof, arremessados contra a parede. Ele se despe com pressa. Ela se esparrama na madrugada. Ele se sente mais forte.


9.10.06

resposta

eu menti verifico cada minuto cada letra cada esquina.


8.10.06

corolário

a verdade -
uma ferida -
não é algo que se esqueça na esquina,
com um pedaço de pão mofado.


mais um de domingo

Girar nos próprios calcanhares.
Cansa,
eu bem sei.
É que o amor de um homem,
por um homem
foi o que de mais fundo se entranhou em mim.
Como o que eu achei,
desde pequena,
que a vida seria.
Por isso repetição,
essa repetição surda, boba, reverberante.
Podem ser só voltas,
piruetas,
minha memória esgarçada, sempre.
Mas um carinho
um tapa
ainda são maiores que qualquer deus,
que toda a filosofia.


afeto

as escadas mais sujas
menos sujas

uma flor num copo d'água
resiste

só guardo os segredos dos outros.


6.10.06

Nomes são combinações de letras 2

O espaço entre os pensamentos,
um céu azul, uma letra gravada na pele
- e osso e carne.

Teste:
Experimente abrir uma folha de jornal;
vai achar um nome,
combinações de cores e formas.

(O desejo salta aos olhos.)

Falo baixo, sílabas dissonantes –
não troque o meu,
não de novo.

Um céu de letras voando,
azul entre os pensamentos.


5.10.06

e o redentor

Minha casa (se for minha casa)
é grande - e pequena.
Cabem todos os fantasmas do mundo;
não cabem os da minha vida.


3.10.06

planeta

Uma camiseta branca muito maior do que o corpo
- e todas as perguntas.
Me recuso
terminantemente
a ser só isso que está aqui
- eu penso,
às vezes,
quando não sinto
(é pouco, eu sei,
mas recuso esse rótulo
e toda a temática
perdida entre linhas e estilos.)

Se eu me movesse
como aqueles animais
nos programas que antes eu via de madrugada
(não penso nas madrugadas de antes) -
fosse rápida
violenta -
ora, animal.

Ridículo este tom de pele desbotado
Bobos os cabelos, essa marca de elástico
pintas manchas esmalte descascado
(e o pãozinho com manteiga no café da manhã).
Eu queria ter cicatrizes.