17.8.06

Rio, 16 de agosto de 2006

Querida Flávia,

No meu último dia em Paris, eu fui ao cinema. Me pareceu errado, mesmo na hora, mas eu fui. Assisti a um filme que já tinha visto, um filme bobo, um filme passado em Paris, em ruas por que eu nunca cheguei a passar e em outras que eram caminho quase diário, parte da vida cotidiana. Era estranho ver a cidade ali, na distância da tela, mas sabê-la ao redor de mim, fora da sala.
Mas penso hoje: mais do que um artifício de despedida - o distanciamento iniciado ali, através do cinema, que, do dia seguinte em diante, seria a única forma de eu rever a cidade -, aquela decisão de ver o filme (tomada assim, de repente, eu andando pelo boulevard St. Germain, “só restam as fileiras da frente; vous voulez entrer quand même?”) era uma tentativa última de registrar a cidade em imagem firme, concreta, sempre disponível. Impossível, claro.
Uma segunda e última tentativa. Na noite anterior, penúltima em Paris, eu saí andando quilômetros para fotografar o que, antes, eu julgaria infotografável. Paris me ensinou a fotografia por meio de suas delicadezas. O brilho exato da luz amarela sobre os paralelepípedos de uma ruela que, de dia, era nada. A parte lateral do Louvre, ignorada pelos turistas, que, no papel fotográfico, mostra-se como é pra mim: um cenário. E outras tantas sutilezas.
O amor a uma cidade é a minha forma possível de poligamia. Apesar dos ciúmes que sinto de todos os bilhões de pés que já pisaram as minhas e que não souberam vê-las como eu julgo que devam ser vistas. Ou que souberam. Pior se souberam - é impossível que saibam. (Lembro que, em Buenos Aires, tremia de raiva de pensar que “os outros” não reparavam que lá a tarde não acabava nunca, mesmo quando escurecia - e de medo por pensar que talvez reparassem.)
Mas o amor a uma cidade permite a poligamia porque são vários os corpos que oferece aos seus amantes. É um amor completo, total, que oferece a cada um dos que sabem retribuir-lhe, de todas as formas que eu nem posso conceber.
Fiz meu álbum de fotografias de Paris e, durante meses, não podia deixar de olhá-lo, primeiro todos os dias, depois dia sim, dia não, uma vez por semana... até que se tornou mais um álbum, no meio dos livros, no alto da estante. Eu o olhava como quem lembra de um amor que acabou - ah, mas que equívoco! Foi só muito tempo depois, quando revi as fotos, cheia de nostalgia e de saudade, mas sem a sensação de que aquilo me havia sido tirado, é que percebia o quanto ela me pertencia. Mais: quando voltei a Paris e ela não era mais a mesma, e eu não me achava mais tão dona dela - foi aí que eu percebi o quanto, sim, ela era minha. Irrecuperavelmente, por falta de advérbio melhor.
Como aquilo que conversamos outro dia: é quase um amor - ou uma importância - alheia ao objeto em si (“o desejo só deseja o desejo”...). É sobre conquistar a inteligência e o charme em um homem, a graça e o humor em outro, a inconstância e a força em um terceiro. Talvez tenha até pouco a ver com amor e mais com a construção de si mesma. Ou talvez seja uma forma de amor muito humana e muito feminina. Que estendo - acho que estendemos - às cidades.

Sabe, quando terminei de levar minhas malas para o carro, subi para olhar meu apartamento quase vazio. Achei que deveria chorar, ficou qualquer coisa ali entre o esôfago e a garganta. Mas saí do prédio de olhos secos.

É cafona, mas você não está deixando Buenos Aires. E, sobretudo, essas avenidas, esse jeito de os portenhos falarem, esses livros, os restaurantes, o champanhe em horário de trabalho!, as roupas, as horas, os jornais e as manhãs não estão te deixando.

Ficou uma carta sem humor, mas sei que você vai sorrir nas entrelinhas.

Com todo amor,

L.



5 Comments:

Blogger Alice Sant'Anna said...

muito lindo!
e a foto parece pintura.

4:50 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

vc é uma pessoa bonita, loreley.

5:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Concordo com tudo que elas disseram e acrescento o que a Clícia disse.

Aliás, acrescento mais: só depois de deixar a cidade é possível descobrir coisas que você amava e não se dava conta.

7:30 da tarde  
Blogger Geeks da Política said...

você é um presente pra mim, de amor, de inteligência, de amor, de inteligência, de amor e inteligência. com orgulho digo: que bom que voce publicou aqui para todo mundo ler a escritora que está a cada dia mais potente. que bom que só eu sei exatamente o que ela quer dizer, o que ela está dizendo a mim.
falta alguns minutos para eu ir pro aeroporto.
todos os dias o aeroporto.
de lencinho de bolinha para a película: sempre haverá

8:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

deixar uma cidade é quase tão doído quanto deixar uma pessoa.
às vezes é, inclusive, mais doído.

3:47 da tarde  

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