11.10.06

os outros

Uma noite de poeira. Se acontecesse algo de fato, uma história. Mas não há fatos, então um poema. Ela tira languidamente o vestido, esperando ser vista, suas longas pernas cansadas. Firmes. Ele olha pro lado, cuidando que não a vejam, e não a vê. Já sabe o que existe, bastam os pensamentos. Depois a meia calça transparente, quase transparente, nunca fazem meias calças transparentes. Ela alisa as pernas, esperando ser vista. Ele observa, distraído, através da cortina fina. Os outros chamam, eles estão demorando demais: o motorista está impaciente. Ela enfia uma saia jeans e uma camiseta e sai. As pedras amareladas, ele pensa em antigas fotografias, elas estão úmidas do sereno. Ela pensa em como está mais magra, em como o figurino lhe caiu melhor nesta noite. Os outros a cobrem de olhares invejosos, desejantes. Mas ressoa um relâmpago, caem umas primeiras gotas, e eles a esquecem. Ela segue, seus passos, tap tap tap, nos paralelepípedos. Ele sente a presença dela como um automóvel que passa veloz a seu lado. Mudo. O ar em volta dele treme, seus pêlos se eriçam. Ele se desconcentra dela por causa do frio que sai dela. Ele sobe a escada na frente, pulando os degraus, quatro lances que ele conhece de cor. Ela tem muita preguiça, se arrasta apoiada ao corrimão, os olhos como calda de caramelo, escorrendo, escorrendo. Segue o rastro dele, pela porta aberta; agora fechada. É ela quem lidera os passos à cama. Os sapatos, pof, pof, arremessados contra a parede. Ele se despe com pressa. Ela se esparrama na madrugada. Ele se sente mais forte.


2 Comments:

Blogger Alice Sant'Anna said...

é verdade, as meias calças são opacas, nunca transparentes.

gosto dos olhos escorrendo como calda de caramelo e dos quatro lances de escada e de todo o resto.
beijo

6:27 da manhã  
Blogger Ricardo Senra said...

se a cortina é cortina ou par de meias, tanto faz. pra mim e pros outros.

8:45 da manhã  

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