29.8.09

Agosto

Ainda bem: do cachorro saem uns grunhidos tão cheios de nuances que nem a onomatopeia mais sofisticada deles daria conta. É um prazer sonoro, e som é física, ainda bem. Mas a mulher aos pés da qual o cachorro dormita... ah, essa mulher. Uma avalanche de instáveis constâncias de futuro e passado; fantasmas vadios conjurados. É impossível o azul da tarde. Sempre esse arrepio ao toque suave dos dedos, essa repulsão, uma doença de pele, talvez. Melhor que de alma. Preferível sempre a violência da garra. A crueldade da palavra à nitidez da narrativa: essa dureza sagrada da poesia. É a dor uma musa? Angústia o nome de outra? Clichê, o de uma terceira? Suponha que um homem apanha todo dia, à mesmíssima hora, o mesmo ônibus (sempre o mesmo motorista, os mesmos passageiros - o mesmo destino). Suponha que hoje ele segue a mesma rotina, mas, ao tentar subir, o pé pisa em falso, o corpo desliza, encontra o rosto o asfalto. O ônibus parte sem ele. Eis uma possibilidade.


25.8.09

Vou escrever um poema pra quem não gosta de poesia
E
transformar sobrancelhas pesadas
em apenas centenas de fios
muito escuros, muito grossos,
muito vastos.

E do piscar que me subtrai
(à falsidade da poesia)
(a cada piscar)
faço apenas cílios longos,
olhos castanhos,
branco do olho muito branco.

Mas

difícil é descobrir
o que fazer dessa pinta que
mora no topo
da sua face esquerda
e que é
potência poesia pura
em força e estado brutos.

30/09/2007


Fobia

Brasília é um punhado de árvores ficcionais com copas tão largas e tão cheias de galhos tão cheios de folhas que o chão não vê o céu. E é um solo gigante mais verdadeiro que a verdade, que é telha raspada, que nunca jamais em tempo algum viu verde e que, de cor que não seja árida, só conhece o absurdo e imenso azul mais inclemente que o sol, esse céu que faz pensar no inferno, o azul que é a angústia do sem fim e que, longe de parecer desabar sobre nós, parece nos querer tirar do chão e nos levar até onde não há oxigênio a respirar. Quando penso no longe que estou do mar, quando lembro que estou no interior deste país (que é pele, não entranhas), fujo para onde não vejo o sol. A Brasília parece que falta um teto.