28.8.06

"uma terrível fraternidade de alma"

Eu escolho derramar todas as necessárias lágrimas e fazer todos os inúteis dramas.
Hoje minha vida mudou, mais uma vez, e ninguém perceberia.
Deve ser por isso que me decido pela rua - e, assim, perco o controle sobre o público. Não escolho quem assiste. Ninguém assiste.
Uns rostos bobos observam. E não é que não me firam, mas eu tenho uma armadura de carne e osso e pele. Eu escolho chorar.
Eu tenho muito mais sorte que vocês, que eles, que eu.
Hoje minha vida mudou, mais uma vez, e nem eu perceberia.
Nós vamos sofrer, nós vamos gozar.

Se há a opção pelo belo e forte,
por que escolher o feio e violento?


26.8.06

la voiture à malices

Escrever tem disso: serve pra esquecer ou pra lembrar?

O avesso.

A palavra que eu queria lembrar hoje à tarde era solene; mas se eu tivesse lembrado na hora, não teria dito.


25.8.06

nojo

eu quero cuspir meu coração fora;
um pouco de esforço e
aaahhhhhhhh
mais um pouquinho e
mmmmmmmmmm
- pãp -
aqui está;

eu pago pra que levem esse troço pra longe de mim.


os chineses

Os dois de mãos dadas, mas os dedos frouxos.
Um amor crônico -
porém cheio de agudezas.

Na cabine do trem, um de frente pro outro. Engraçado como não vêem mais a mesma coisa. Quase a mesma. Muda o ângulo e a perspectiva. Ela vê o que vem; ele, o que já foi. Não é uma metáfora. Ela, ela apenas fica tonta quando se senta de costas para a cabine do maquinista.

Na China, a população é de mais de 1,3 bilhão, parece. Tem até aquela piadinha: se todos os chineses resolvessem pular ao mesmo tempo, o mundo tremeria. De todo jeito, é um bocado de chineses. Na Coréia do Norte, há 23 milhões de habitantes. Na Coréia do Sul, mais 10 milhões. Os coreanos que fritam pastéis em óleo sujo no Rio vêm de onde? Do Norte ou do Sul? Eles têm as unhas tão encardidas, as camisetas amareladas de gordura. Acho que todo mundo sabe disso, mas continua comendo os pastéis.

Eu tenho a valentia sentimental necessária para uma boa heroína; o que estraga é minha pouca firmeza do destino de mártir e a leveza insuficiente para um final feliz. A idéia é resistir às provações, uma vez a elas entregue. Só que meus pés pisam forte as tábuas estreitas de madeira. Não é um protesto, é uma fuga. Em todo caso, é feio, frágil, vulgar. Mas é bem mais fácil deixar o teatro quando se é apenas mais um espectador. Faço da rua vazia meu palco: dramatizo pra ninguém. Atravesso a rua sem olhar para os lados - uma falsa loucura. É noite no centro do Rio e não passa quase carro nenhum.

Sei distinguir chineses e coreanos. Por algum motivo, isso me parece uma particularidade minha, um talento: saber distinguir chineses e coreanos. Uma bobagem, sem dúvida. Uma vez estava viajando ao lado de duas coreanas em um trem. Acordei com o pé de uma delas quase apoiado no meu rosto. A meia estava imunda; o fedor me deixou cheia de náusea. Sabe que acharam um cadáver de um chinês em um restaurante em Portugal? Isso depois de alguém denunciar o lugar à vigilância sanitária - após achar uma unha no meio de um prato. Não vomitem.

Engraçado como as lágrimas às vezes vem aos borbotões, como um vômito. Não posso me impedir de achar bonito. Eu gosto de me identificar com a mocinha, quando ela sofre. Aí acho que quase tudo se justifica. Eu fico frustrada quando o pranto seca sobre o rosto despreparado para aquela secura. Os olhos vermelhos, atônita.

Eu não como desses pastéis.

Queria não ter que dizer nada. Com uma bomba matar todos os chineses e coreanos, para que eles nunca mais sejam assunto de conversa alguma. Que ele me cerrasse os dedos com força. Quase machucasse.


24.8.06

yoga

Quando eu penso, eu me desequilibro.

Que bobagem, que bobagem.


21.8.06

interrogações

Se eu tivesse seu rosto aqui diante de mim,
afagaria ele inteiro, da ponta dos olhos compridos à extremidade do queixo, o áspero da barba me espetando o dorso dos dedos; e depois, do outro lado, todo o caminho inverso.

Seria o carinho mais triste do mundo.

Então me recolheria, entre os lençóis bagunçados, com a cara virada pra janela, e tentaria dormir.


19.8.06

chove, afinal

muito bem, Lili.

janelas emperradas,
em breve: o quarto inundado.


camisas vermelhas

Entre um corpo e outro, a distância de todos os espíritos:
acúmulo de forças, concentração de vontade, pra
(como num pulo)
ultrapassar esse limite
grosso,
plástico,
amorfo,
de almas.

Somente num salto eu chego a você - se dá conta do esforço, da aposta, do medo?

É só um beijo
e o mais importante dos beijos;
é só uma infinidade de nós elásticos que me prendem, me prendem

do outro lado.

(Do corpo, no corpo, todo o prazer,
todo o horror.

O resto nem existe.)

Faz frio no meu quarto, meus braços procuram alento em vão.


os corpos; as almas

Eu não sei mais como fazer e
desde quarta-feira o meu caminho de qualquer lugar à minha casa cheira a queimado.

A pele cede, à pressão da minha a pele cede, a carne, é lei, é física; sobre temperatura eu tenho certeza, sobre meus dedos, fundos, na carne. Pele. A textura da língua entre palavras, se eu beijo, eu calo a palavra não. Ou não. Se eu beijo, o não escorrega entre mãos, costas, saliva. Enquanto eu beijo. Os líquidos obedecem à física, derramam-se, enquanto

a alma permanece suspensa,
ar,
intangível.

E a minha foge;
da minha pele,
carne,
lei.


17.8.06

Rio, 16 de agosto de 2006

Querida Flávia,

No meu último dia em Paris, eu fui ao cinema. Me pareceu errado, mesmo na hora, mas eu fui. Assisti a um filme que já tinha visto, um filme bobo, um filme passado em Paris, em ruas por que eu nunca cheguei a passar e em outras que eram caminho quase diário, parte da vida cotidiana. Era estranho ver a cidade ali, na distância da tela, mas sabê-la ao redor de mim, fora da sala.
Mas penso hoje: mais do que um artifício de despedida - o distanciamento iniciado ali, através do cinema, que, do dia seguinte em diante, seria a única forma de eu rever a cidade -, aquela decisão de ver o filme (tomada assim, de repente, eu andando pelo boulevard St. Germain, “só restam as fileiras da frente; vous voulez entrer quand même?”) era uma tentativa última de registrar a cidade em imagem firme, concreta, sempre disponível. Impossível, claro.
Uma segunda e última tentativa. Na noite anterior, penúltima em Paris, eu saí andando quilômetros para fotografar o que, antes, eu julgaria infotografável. Paris me ensinou a fotografia por meio de suas delicadezas. O brilho exato da luz amarela sobre os paralelepípedos de uma ruela que, de dia, era nada. A parte lateral do Louvre, ignorada pelos turistas, que, no papel fotográfico, mostra-se como é pra mim: um cenário. E outras tantas sutilezas.
O amor a uma cidade é a minha forma possível de poligamia. Apesar dos ciúmes que sinto de todos os bilhões de pés que já pisaram as minhas e que não souberam vê-las como eu julgo que devam ser vistas. Ou que souberam. Pior se souberam - é impossível que saibam. (Lembro que, em Buenos Aires, tremia de raiva de pensar que “os outros” não reparavam que lá a tarde não acabava nunca, mesmo quando escurecia - e de medo por pensar que talvez reparassem.)
Mas o amor a uma cidade permite a poligamia porque são vários os corpos que oferece aos seus amantes. É um amor completo, total, que oferece a cada um dos que sabem retribuir-lhe, de todas as formas que eu nem posso conceber.
Fiz meu álbum de fotografias de Paris e, durante meses, não podia deixar de olhá-lo, primeiro todos os dias, depois dia sim, dia não, uma vez por semana... até que se tornou mais um álbum, no meio dos livros, no alto da estante. Eu o olhava como quem lembra de um amor que acabou - ah, mas que equívoco! Foi só muito tempo depois, quando revi as fotos, cheia de nostalgia e de saudade, mas sem a sensação de que aquilo me havia sido tirado, é que percebia o quanto ela me pertencia. Mais: quando voltei a Paris e ela não era mais a mesma, e eu não me achava mais tão dona dela - foi aí que eu percebi o quanto, sim, ela era minha. Irrecuperavelmente, por falta de advérbio melhor.
Como aquilo que conversamos outro dia: é quase um amor - ou uma importância - alheia ao objeto em si (“o desejo só deseja o desejo”...). É sobre conquistar a inteligência e o charme em um homem, a graça e o humor em outro, a inconstância e a força em um terceiro. Talvez tenha até pouco a ver com amor e mais com a construção de si mesma. Ou talvez seja uma forma de amor muito humana e muito feminina. Que estendo - acho que estendemos - às cidades.

Sabe, quando terminei de levar minhas malas para o carro, subi para olhar meu apartamento quase vazio. Achei que deveria chorar, ficou qualquer coisa ali entre o esôfago e a garganta. Mas saí do prédio de olhos secos.

É cafona, mas você não está deixando Buenos Aires. E, sobretudo, essas avenidas, esse jeito de os portenhos falarem, esses livros, os restaurantes, o champanhe em horário de trabalho!, as roupas, as horas, os jornais e as manhãs não estão te deixando.

Ficou uma carta sem humor, mas sei que você vai sorrir nas entrelinhas.

Com todo amor,

L.



13.8.06

o pcc seqüestrou um repórter da globo

(Você preferia ganhar um poema ruim ou todos esses não-poemas?)

Não são só escadas: túneis também. Nesse caso, é bem melhor à noite (parece menos escuro). Uma disfunção qualquer: o fôlego falha é na volta. Pra baixo nenhum santo ajuda: empurra e torce as pálpebras com a força de uma camponesa. Com os dedos a cebola de uma camponesa.
Seca rápido.
O coração na boca e a pesada porta de metal, o espelho retrovisor.
Isso é uma narrativa: só faltam os verbos e os advérbios de tempo; o tempo não passa.

(Eu te pago, rapaz, pago a quem for de direito, só pra te ver passando. Cinqüenta reais pra você atravessar a rua diante do meu carro. Cem - pra você olhar na minha direção. Mesmo sem me reconhecer. Cento e cinqüenta se acenar.)

O hábito de parar na curva, no terceiro degrau entre o terceiro e o quarto andar tem uma mancha na pedra que parece um sapo. Lembro de um descascado na parede do outro quarto que era o desenho de um pato. Acho que a pior parte de descer as escadas é olhar pros próprios pés, unhas encardidas, esmalte velho, se despedindo.

Na próxima vez, vou contar os sinais de trânsito.


10.8.06

she says cliché

Essa vontade é um buraco aberto no meio do peito.


9.8.06

anos

Antes: O corpo ardendo. Eu deitada no chão de tábua corrida, uma febre ao contrário e
Um grito idiota numa madrugada de ano novo.
Hoje: Eu fico tonta, eu desfaleço.


8.8.06

oito lances

as mesmas escadas as mesmas escadas as mesmas escadas
outras pernas tantas
tênis sapatos tornozelos
as saias que balançam sobre os degraus
qualquer poeira esquecida, escapada das solas
um resto de pó de pele morta deixada no corrimão,
numa parada qualquer,
o rosto virado pra cima, o sorriso,
o mesmo sorriso,
outro amor.
as mesmas escadas
outros sorrisos
outras surpresas
a diversão dos vizinhos
as músicas
as mesmas escadas as mesmas esperas as mesmas portas abertas
e as fechadas, tantas


alguma coisa ainda

Droga! Que elas ficam escorrendo, escorrendo.
Como eu descendo as escadas,
e os vizinhos se confundem - em rostos e cabelos.
Eu: nunca mais.
Não é sobre lógica, históricos, experiências - é sobre lágrimas.
Não é sobre inteligência, mas cafonice.
Eu queria
- mesmo agora -
escrever bonito.
Mas, depois desse cinza,...
espero esfriar; espera.


5.8.06

medidas

pouco mais de uma semana três discos um conto e meio 357 reais dois vestidos uma canção duas palavras três consoantes ou seis ou uma quatro ligações não atendidas duas mensagens ou três 2.789 caracteres 54 páginas ou zero cinco chopes um bocado de horas sete cantoras ou uma dez noites um abraço um amor dois pés vinte dedos ou 27 zero beijo ou um ou dois ou mais 27 anos 177 centímetros 5 horas 21 minutos quatro visitas diárias ou cinco ou uma cinco meses 2007 anos duas esperanças seis linhas uma besteira duas faculdades dois anos um abandono dois sobrenomes catorze países 124 quedas 78 táxis um abraço mil pares de brincos perdidos seis metros de tecido de bolinhas dois metros de tapete três tatuagens uma letra duas aulas dois quilômetros nove quilos três mortes um fracasso três anões uma revista um jornal um sucesso três fantasias quantos fios de cabelo quatro mãos acenando adeus ou uma ou zero poucos centímetros de quadril um coração partido três poetas ou quatro duas escritoras quatro músicos uma voz zero gol cinco gavetas onze prateleiras treze canetas gastas três filmes ou seis uma tragédia um assassinato ou zero cinco litros de sangue mil metros quadrados dois desmaios uma cirurgia quatro terapeutas dois psicanalistas dois navios um texto inútil ou todos dois copos roubados 23 copos quebrados três chaves cinco casas sete escolas três amigas ou cinco ou dez um desejo uma pessoa.