24.2.10

Fotografar ferrugem,
e olhar no espelho
o olhar da despedida
que nunca aconteceu.


18.2.10

Os anos passam,
e ainda: as pessoas são o que elas são
E não são nem um pouco mais
e não chegam quase nunca a ser menos
- talvez às vezes um pouco menos.

A amizade que se transmutou em náusea,
o amor que era muito e se apagou;
o rancor que era pouco e morre e morre e
não está nunca morto.
E pairando, numa espiral de agonia,
as palavras e seus não sentidos,
fugidios, claros e de chumbo.

Vejo as pessoas nos olhos redondos
- redondos e brilhantes e escuros -
do meu cachorro.
As pessoas refletidas são opacas
- opacas e brilhantes e tristes -
tristes como às vezes são os olhos
do meu cachorro.

Mas o que ele saberia dessa cruel desalegria?
Ele, que ri de uma risada generosa?
(E isso sem nem mesmo rir.)

Afetos e gestos e o descompasso entre eles.
Afetos e gestos e a incoerência total.
Pernas mancas, olhares atravessados.
Carne partida, abraços pesados e tortos.
Peito aberto, e uma massa que escorre
e escorre e escorre e escorre
sem nunca terminar de escorrer.

É um troço cinza, vermelho e branco,
e é bonito e feio e impossível

Não quero esta chave,
fechadura, cola, cimento.
Quero apenas a minha parte.
Eu grito: a minha exata parte
igual à que de mim escorre nos outros
do que escorre dos outros em mim.


11.2.10

Eu tenho muitos sapatos, e
pelo menos metade deles eu não uso nunca
ou quase nunca.
Houve uma época em que eu tinha menos sapatos,
e uma porcentagem bem maior
de modelos desconfortáveis.

De noite, eu rio à beça, eu vejo
um bocado de filmes
e eu toco um piano imaginário.
Às vezes, entre uma risada e outra,
meu coração aperta,
mas aperto mais forte os olhos.

De noite, mas mais tarde,
eu durmo numa cama bem grande,
e um vento fresco e sincero
joga meu cabelo sobre o rosto.
O cachorro resmunga, preguiça,
e o sono me toma, como
um sequestrador, sua vítima.

A madrugada é uma fuga a galope,
acordo muitas vezes aos solavancos
como se a cama, e só ela,
e só o meu canto da cama,
fosse um cavalo, e selvagem.

De manhã eu acordo, porque é
só o que se pode fazer em uma manhã.


7.9.09

A falta de resistência ao toque suave, aflição, deve vir de algum lugar - de dentro ou de fora -, deve vir de algum lugar. Se um dedo, grosso ou macio, encosta atrás da orelha nuca coxa (ou até naquele pedaço de carne que fica entre o polegar e o indicador), se esse dedo encosta e não pode (não pode não), se quase dói, se é angústia gastura irritação, deve vir de algum lugar, de trás ou de agora, do fundo, do raso, isso vem de algum lugar.


Eu vejo no espelho um olho ruim, falsificador
muda o objeto a seu gosto
muda pra pior
um olho corrupto, mau
um olho cruel.


29.8.09

Agosto

Ainda bem: do cachorro saem uns grunhidos tão cheios de nuances que nem a onomatopeia mais sofisticada deles daria conta. É um prazer sonoro, e som é física, ainda bem. Mas a mulher aos pés da qual o cachorro dormita... ah, essa mulher. Uma avalanche de instáveis constâncias de futuro e passado; fantasmas vadios conjurados. É impossível o azul da tarde. Sempre esse arrepio ao toque suave dos dedos, essa repulsão, uma doença de pele, talvez. Melhor que de alma. Preferível sempre a violência da garra. A crueldade da palavra à nitidez da narrativa: essa dureza sagrada da poesia. É a dor uma musa? Angústia o nome de outra? Clichê, o de uma terceira? Suponha que um homem apanha todo dia, à mesmíssima hora, o mesmo ônibus (sempre o mesmo motorista, os mesmos passageiros - o mesmo destino). Suponha que hoje ele segue a mesma rotina, mas, ao tentar subir, o pé pisa em falso, o corpo desliza, encontra o rosto o asfalto. O ônibus parte sem ele. Eis uma possibilidade.


25.8.09

Vou escrever um poema pra quem não gosta de poesia
E
transformar sobrancelhas pesadas
em apenas centenas de fios
muito escuros, muito grossos,
muito vastos.

E do piscar que me subtrai
(à falsidade da poesia)
(a cada piscar)
faço apenas cílios longos,
olhos castanhos,
branco do olho muito branco.

Mas

difícil é descobrir
o que fazer dessa pinta que
mora no topo
da sua face esquerda
e que é
potência poesia pura
em força e estado brutos.

30/09/2007


Fobia

Brasília é um punhado de árvores ficcionais com copas tão largas e tão cheias de galhos tão cheios de folhas que o chão não vê o céu. E é um solo gigante mais verdadeiro que a verdade, que é telha raspada, que nunca jamais em tempo algum viu verde e que, de cor que não seja árida, só conhece o absurdo e imenso azul mais inclemente que o sol, esse céu que faz pensar no inferno, o azul que é a angústia do sem fim e que, longe de parecer desabar sobre nós, parece nos querer tirar do chão e nos levar até onde não há oxigênio a respirar. Quando penso no longe que estou do mar, quando lembro que estou no interior deste país (que é pele, não entranhas), fujo para onde não vejo o sol. A Brasília parece que falta um teto.


12.5.09

É como num manual de instruções que te digo isso aqui:
você tem que não ter medo de quebrar
você tem que me partir em dois
pedaços.

Essa foi a introdução;
a introdução sempre diz tudo.
O resto é pra quem tem preguiça de aprender.


13.2.09

Subjetividades

Sabe escrever, tem à frente quase todas as palavras. E escreve toda noite, no escuro, o vazio sobre o nada.

Vê a alma à porta. Estende a mão; dentro dela a chave. Apaga a luz.

Tem os ouvidos no próprio peito; a boca, na memória. Quer amar, mas tem os olhos no chão.


28.1.09

Fogo fátuo

Eu não lembro onde ela estava na última vez em que vi minha gata,
e eu não sei onde é que os pelos caídos dela ficam esquecidos agora.

Onde é que estão minhas pernas finas, meu walkman, meus cartazes?
Cadê o viço dos meus pais, a cor dos meus cabelos, a barraca de camping, o jogo da vida?

Não sei mais do meu livro nem das minhas mãos;
cadê a melodia fácil das palavras, as linhas, e aquilo que poderia ter sido meu brilho? Onde foi que eu meti as maravilhas da pontuação?

Nem sei em que canto deixei a cama do meu primeiro amor.

Não tenho nem por onde recomeçar; perdi o fio da meada; onde foi parar meu coração?

Que diabos, os anos passam, e o peito resiste e o peito reabre e acolhe e explode e sufoca, e o corpo persiste, o corpo emagrece e engorda, as pernas andam e a boca come. Enquanto o pulmão expulsa o ar num suspiro, com esforço constante o espírito prende a respiração.


22.1.09

Oba!

Mais um blog neurótico sempre cai bem.
Visitem a página de quadrinhos do Thiago Camelo: Elétrons e Prótons.


9.1.09

Então vamos lá: um porão vazio, nada pra comer.
Mais: tá escuro. Quero dizer, bem escuro.
Só que isso ainda não basta.
Há um coração ali,
um coração dentro de um peito,
um peito à frente de uma pessoa,
um peito como um escudo.
Contra nada: é um porão muito frio;
há um copo de água que nunca termina, e uma sede que, enfim, se mata.
Um porão vazio, muito escuro.
Um coração ali, protegido;
não tem perigo nenhum.


26.11.08

L'art pour l'art

Eu não cito: intuo
O que só é dentro de mim
Frase fechada em si
Não sai de dentro daqui.

Arrisco:
Tem gente que é tão besta.

Eu quero:
Um poema que encharque.


2.11.08

cul-de-sac

Nasci aleijada: sem ser artista, com esse atordoamento inútil dos artistas; diante de tudo. Essa surpresa sem saída diante da manteiga que derrete.


essa dor do espelho.


5.9.08

é um equilíbrio difícil
tenho duas vozes,
e outra, mais dramática.


22.7.08

aqueles dias:
você precisa me fazer um pouquinho infeliz
também,
às vezes.
você diz que não quer
então vou ter que sujar minhas mãos.


16.6.08

de perto, são só pedras

Restam poucos dentes
nos poucos habitantes
da terra da minha mãe.

Sobram batatas
apesar dos ratos, caracóis, chuvas
que também eles sobram.

Restam dentes e alegrias
Sobram lamentações.

A casa da velha senhora, eu pensei em fotografar.
Pudor,
preguiça.

Na cadeira de plástico em que me recebeu,
na cozinha (o forno fica fora da casa):
As batatas sujas, e as couves sujas, sobre a mesa suja, eram espetáculo para centenas de minúsculos insetos que turvavam meus olhos e deixavam minha boca áspera.
Para a velha senhora: nada.
(Minha presença: brilho.)

Por sob a placa, sou toda pressa
e fuga
do rio que não conheci
do cume em que já não fui,
dos pensamentos que só deixo entrar ao avistar, enfim, a minha terra,
que, sem passado, nunca está.


9.5.08

Chorume

Nada (que não isso) me importa,
admito;
nada mais me importa

Embaixo do viaduto
correm águas sujas
levam lixo que saiu de gente
há tempos
tremendos tempos mesmo;
correm ainda:
merda

E nem isso;
nem esse fedor

O pior cheiro que existe é o daquele líquido que escorre dos sacos de lixo esquecidos na beira da calçada perto de qualquer casa. Comida estragada. Papel higiênico usado.

Meu coração late
feliz


30.4.08

Escurece e as paredes do meu quarto; de dentro das paredes do meu quarto, uma voz surda pede repetidamente: que eu me desespere. Só que a gata entra silenciosa, e ela é tão macia. E na janela ao lado a televisão fala tão alto. E a madrugada escorre e molha o meu cabelo.


3.4.08

A casa ainda não é minha,
meus pés eu sinto se sujam a cada passo
eu sempre saio de casa
antes
de chegar em casa.

Eu enumero as cores.
Três vezes vermelho
Duas vezes laranja
Também dois azuis,
um roxo,

E o amarelo que a gata escolheu
(arranha as unhas, faz manha).

Na parede ele me acena de longe no tempo
Respondo com um imperceptível gesto de rosto e olhos
de ainda mais longe, mais longe ainda.

No posto de gasolina,
o senhor me diz
- Só tem imundície, ninguém anda lado a lado.
Eu concordo, eu penso
- A verdade é que nada disso me importa
Minha dor está sempre em outro lugar.


26.2.08

foi em algum momento
entre você enxugando as lágrimas,
a mão direita no trinco da porta
do carro vermelho,
a mão esquerda na minha,

e

a lista de bebidas na comanda de papel
do restaurante a quilo
na barão da torre,
onde é estranho estar sozinha,
lendo a palavra gatorade.


hoje
nem mesmo sete da manhã
eu atropelei uma pomba
cinza e branca.

um barulho seco
lataria
lata
barulho seco
balão estourado.

depois das cinco
antes das seis,
já me virava na cama
mosquitos anunciavam
a morte.

antes das sete
vi as penas voando sobre o asfalto morno
pelo espelho retrovisor

e os olhos quebrados da manhã
nas pernas dos alunos de uniforme.


21.2.08

libertango

times square
ou qualquer coisa parecida
vento
e
olhos secos
olhos
luzes em linha
velocidade
x
tempo de exposição
olhos
secos
teatro de revista
outlets
let's not go home
let's stay
forever
away
forever
blue
há coisas que
(táxi)
só a solidão faz por você.


14.1.08

Você vê bem
que
eu sou um
punhado de terra seca;
calor de sol
sede
e
uma preguiça suada,
da ausência mais feia,
coração de poeira pisada.


que
teu charco não chega
mais
aqui,
que
escorre em buracos
em países longe
de mim.

Vejo
que
a areia que
jogamos
eu daqui
cê daí
terraplanou
o mar
virou sertão;
eu não encontro mais
cê não encontra mais
a tua
a minha mão.


7.1.08

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville


Meu coração não tem guarda-chuva.


22.12.07

Cinco e meia da manhã e
três janelas resistem acesas -
ou já despertam ? -
outras três à meia-luz;
como eu insones, olhos embaçados
diante da tela muito branca
branca demais para esta hora.
é sábado já,
sábado ainda;
as letras me parecem tortas:
os óculos na mesa de cabeceira
continuam no mesmo lugar -
não quero acordá-lo
ou não quero acordar?


26.11.07

Domingo

Metade de um mundo perfeito:
a água escorre suja embaixo dos meus pés,
o esmalte sempre tão velho; meia unha já se vê de cor de unha, carne desbotada, meia lua, no céu o Cristo.
De todos os lugares, as mesmas montanhas: metade de um mundo perfeito.
A mesma gata busca com as orelhas meu carinho, o mesmo gato ilumina o quarto com os olhos amarelos: os mesmos pêlos no lençol, eu desperdiço ainda o tempo.
Escorre, escorre, escorre.
As palavras fora de controle: escorrem, escorrem, escorrem; as músicas sempre tão tristes.


4.11.07

91

pedro olha
as luzes que se apagam
e se acendem
(gosta de olhar)
a confluência dos televisores
a disfluência de vidas
varais
lâmpadas frias
crianças voando das varandas
(e fica triste)
no escuro
nossos pés sem foco
nossos olhos baços
e la nave va.


14.10.07

Eu perco o tempo.
(Nem chega a ser surpresa o aviso no jornal – a maior supresa: já é outubro?)
(Nem chega a ser surpresa o aviso no jornal – amanhã o dia termina mais cedo, fica claro até mais tarde, então dormimos ainda mais, e quase nunca almoçamos na varanda)
Um descompasso de dois anos: sinto falta de escrever, de olhar o mundo com outros olhos, os seus, de ver como os olhos se aproximam, como o tempo demorava, demorou um dia a passar.
Os dias eram mais longos quando eu era mais jovem, o som do acordeão me irrita, todos os sons me incomodam, não são os sons sem som dos passos dos gatos; não são os fantasmas da sua antiga casa. Ninguém me entende mais e eu fico gargalhando, tão triste, tão inconsolavelmente alegre, tão perdida.
Sei como ninguém que é hora, finalmente (inicialmente), de apressar o passo, fazer valer a coragem, a fuga. E me sento aqui nesse sofá, eu gosto da brisa. Eu também (enganei todo mundo) gosto de brisa. Mas até tenho saudade de quando tudo era difícil, e era fácil escrever um poema, mesmo que ruim, mesmo que igual a todos os outros.


9.9.07

complemento

E eu tenho tanto medo da distância que é um centímetro, tempo e silêncio.
- É por isso - ele me diz - que eu durmo com o corpo jogado em cima do teu.


21.8.07

De setenta sextilhões no céu
apenas um ponto no universo
reluz e gira e fica;
só uma estrela verdadeira.

Nessa história de nós seis bilhões
ainda vai dar tudo errado
essa história de nós três
essa história de nós quatro